quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Vejo-os

Vejo mortos.

Nem precisa continuar a me imaginar cinematograficamente mediúnica, como o rapazinho assustado de “Sexto Sentido” a sussurrar “I see dead people”. Não é nada disso.

Vou ser paciente com você que é tão paciente comigo, mesmo eu retornando a este tema: a morte. É que eu vivo (e não consigo rir da presente ironia) pensando nela. Então, pacientemente, reformulo a frase: vejo os meus mortos.

Percebo que ainda não fui compreendida. Tire a viseira e tente mais uma vez. Não vejo gente morta. Não vejo a minha gente morta. Não mantenho contato, nem visual que seja, com espectros fantasmagóricos a me contarem informações além-vida. Gostaria de ter essas informações. Gostaria de saber como estão, se me esperam e, principalmente, se sabem se essa será uma espera longa.

Vejo meus mortos, agora sim, o tempo todo. Vejo-os nos objetos, nos móveis, na rua. Vejo-os na televisão e no cinema. Nas revistas e nas notícias do jornal. Vejo-os nos livros que leio à noite e no café que tomo pela manhã. Vejo-os em tudo o que gostaria de com eles compartilhar. Vejo-os naquilo que sei que eles gostariam de também ver. Vejo-os nos lugares, nas viagens, nos cheiros, nos sons e nos hábitos que carrego.

Sei que estão mortos. Duramente, sei disso. Vê-los, no entanto, em todas as coisas que me cercam, é aceitar que estão mortos, mas nunca, jamais, matá-los. Vê-los é a minha pequena vitória sobre a morte.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Música de Ninar

Dorme,
Ó meu anjo lindo,
Que a noite vem vindo,
Quem vela sou eu.
*
Dorme,
E sonha comigo,
Ó meu grande amigo,
Quem vela sou eu.
*
Dorme,
Com riso na boca,
Que a noite é tão pouca,
Quem vela sou eu.
*
Antônio cantava essa música de ninar para sua neta. Quase trinta anos depois, ela cantarola baixinho sua melodia quando a escuridão da noite significa muito mais do que ausência de luz. Ao ninar-se com a música do avô, ela projeta sua alma para longe da solidão e das sombras, para um lugar na memória afetiva onde tudo é aconchego, proteção e amor.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Instinto

Sinto-me bicho,
Coberta de moralidade animalesca,
Ausente de julgamento,
Totalmente ignorante do certo e do errado,
Do bom e do ruim,
Do dever e do direito.

O que em mim pulsa é necessidade,
Sinto fome e como,
Sinto sede e bebo,
Sinto raiva e mato,
Sinto desejo e deito-me.

O meu olhar não está no ontem,
(não tenho arrependimentos),
Muito menos no amanhã,
(não meço conseqüências).

Do fogo renasço e no fogo me consumo
Da água surjo e na água me afogo
Da terra sou fruto e na terra me enterro
Do vento sou filha e no vento me desfaço.

Amoral, instinto e fúria.
Animal.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Betinho

Betinho teve filho. Impossível não lembrar de quando o conheci. Amizade instântanea entre dois pré-adolescentes que se achavam grandes e que sonhavam com o futuro. Quer dizer, eu sonhava. Para Betinho, hoje sei, eram planos: projetos estrategicamente traçados desde a infância.
*
Acho que nunca falei como tenho orgulho dele (por que deixamos de dizer coisas tão essenciais?). Orgulho de um cara que saiu de um cidadezinha de três mil habitantes (com importância de metrópole em minha vida) e conquistou o mundo - secretamente, seu principal projeto. Orgulho do filho e do amigo que ele é e, orgulho antecipado, do pai maravilhoso que sei que ele será. O que me deixa com mais orgulho, porém, é ter conhecido alguém que, obstinadamente, projetou e conquistou o que queria (sem esse blá, blá, blá de música da Xuxa e livro de auto-ajuda).
*
Eu, continuo sonhando. Betinho, sei bem, ainda faz planos.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Pílula do Dia

Sempre que descubro algo sobre mim, eu morro. Brutalmente, mato-me. Dolorosamente, mato-me. Mato-me para, então, renascer. Da descoberta, invariavelmente, surge um outro eu.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Ao Remetente

Tão delicada e gentil é Júlia. A vizinha, não eu. Júlia é margarida, é amarelo com bonina. Júlia é porcelana antiga. Júlia me deu dois adjetivos em letras maiúsculas. Não é meu aniversário, não é Natal, não é o dia dos escritores frustrados. Ainda assim, Júlia decidiu presentear-me. Sem motivo. Guardava com ela dois adjetivos escritos em letras maiúsculas e, gratuitamente, embrulhou-os (desde que abrira sua loja de coisas lindas, aprendeu a fazer embrulhos) e deu-os a mim.

E, agora, eis aqui o meu dilema: não posso aceitar o presente. Bem que queria, mas são adjetivos grandes demais (e maiúsculos!): não tenho espaço para recebê-los. Pensei em alugar um depósito: deixá-los-ia lá até conseguir levá-los comigo. Acontece que corre o risco de empoeirar, estragar, empenar. Sabe-se lá quanto tempo adjetivos podem ficar guardados? Adjetivo tem prazo de validade? Selo do Inmetro?

Poderia trocar. Mas onde se trocam palavras? (ocorreu-me agora uma oportunidade de mercado: Lojas Língua-Mãe - satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta).

A única solução que encontro é devolvê-los. “Devolver presente é uma grande falta de educação”, martela em minha cabeça a voz de minha finada avó. Acredito que Júlia, no entanto, irá entender que meu gesto não é birra, arrogância ou despeito. Entenderá minha total impossibilidade de aceitar esse presente tão grande. Saberá ela que em seu poder ficarão melhor os adjetivos maiúsculos. Certamente, Júlia entenderá. Afinal, como já disse, Júlia é margarida.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Dez coisas que odeio em mim

1 - Um comichão que tenho dentro do esôfago e que me impede de aceitar o imponderável (incluindo que não se pode pular nas nuvens);

2 - A mania de nunca verificar os equipamentos de segurança quando me atiro na vida;

3 - O initerrupto movimento que faço entre calmaria e tempestade;

4 - O frequente esquecimento de que vida é aquilo que acontece do lado de fora da gente;

5 - Um incurável vício em melancolia;

6 - A vontade de restringir a minha alimentação a chocolate e queijo;

7 - A total, irrestrita e absoluta falta de capacidade de manter a boca fechada (a observação constrangedora, o comentário ácido, o conselho difícil: serei eu a pronunciar);

8 - A ansiedade por compreender;

9 - A cega certeza de que a intuição vale mais do que a visão e a audição;

10 - A preguiça de fazer ginástica.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Escolha

Entre tantos caminhos,
Entre tantas possibilidades,
Escolho eu, a felicidade.

Sinto saudade, fome e sede,
Sinto insegurança e frio,
Sinto medo e ardo em vontade,
Ainda assim,
Escolho a felicidade.

E eu que até hoje não sabia,
Que felicidade se escolhia.
Pensava ser coisa que o acaso,
Destinava aos merecedores:
- Bem-aventurados prometidos!
Mas não.

Felicidade não é destino,
É movimento.
Não é benção,
É ação.
Não é estado,
É trabalho (árduo até, ouso dizer).

Sim, é verdade,
Existiam outros caminhos,
Existiam outras possibilidades,
Mas eu estou firme e forte:
Fechei com a felicidade.