segunda-feira, 20 de maio de 2013

Des-existir


Aos poucos,  Nina deixava de existir e não era metafórico. Ela deixava, realmente ou irrealmente, de existir. Sumia, evaporava, sabe-se lá para onde. Começou pelos joelhos.  Foram eles que primeiro sumiram, deixando aquele buraco enorme entre as coxas e a panturrilha, mas ela se importou pouco com o acontecido, é verdade, pois nunca tinha gostado muito de joelhos. O mesmo sentiu quando notou, em uma certa manhã, que já não tinha cotovelos. De que servem os cotovelos? Pensou. Tinha tanto trabalho que se assegurou que braços e pernas continuavam articulados e seguiu sem alardes. Certamente, pararia por ai. 

Ninguém, no trabalho, em casa ou na rua, percebeu que os joelhos e os cotovelos de Nina tinham desaparecido, afinal, são partes do corpo que nunca foram reparadas a não ser no caso específico de atletas. Nina não era atleta e o misterioso sumiço de seus joelhos e cotovelos ficou, com o perdão do trocadilho, invisível. Nem mesmo Carlos, seu marido, percebeu. 

Carlos até era muito reparador mas, desde que comprara um hamster suas atenções estavam focadas no bichinho: dar banho, dar comida, limpar a gaiola, brincar com a bolinha, tentar ensinar ele a vir quando chamado. Os cuidados com o hamster ocupavam todo o tempo livre de Carlos e Nina fingia que não se importava, afinal, existia ali uma dedicação sincera e ela não se sentia no direito de interferir. 

Foi à noite, mais ou menos quinze dias depois do sumiço dos cotovelos, que Nina percebeu que estava sem nariz. Ela não sabia em que momento exato do dia, mas o nariz tinha desaparecido. Desesperou. Sem nariz não era possível continuar acreditando que nada demais estava acontecendo. Ela gritou, esperneou, procurou pela casa. Só não chorou porque, desde criança, Nina não chorava. Desnorteada, ligou para Carlos, mas ele não atendeu. Tentou uma, duas, na sexta ele disse alô. Era seu modus operandi no celular: quando Nina insistia, só a atendia na sexta ligação. Apesar de compreender a existência de um padrão, ela não compreendia os motivos, vai ver porque não existiam, assim como seus joelhos, cotovelos e nariz. "Vem logo pra casa", implorou. Carlos demorou um pouco. Abaixo, segue o diálogo, ou parte dele (a que interessa para o desenrolar da história), que foi travado quando Carlos chegou ao apartamento:

- O que foi, Nina?

- Olha, Carlos! Olha como estou!

- Como?

- ...

- Quer me dizer o que está acontecendo? Você me deixou preocupado!

- Você não reparou nada de diferente em mim?

Carlos olhou longamente e soltou, já com raiva:

- Cortou os cabelos? Você me chama desesperada para ver o seu corte novo de cabelo?

- Não, Carlos! Eu estou sem nariz!

- ...?

- Sem nariz! Não está vendo? Sumiu!

- Nina, você é tão exagerada. Sempre fazendo drama com as coisas! Tá respirando normal, não tá?

- Mas, Carlos, tem um buraco no meio da minha cara!!

- Eu tô achando igual. Bobagem a sua. 

- Mas já sumiram meus cotovelos e meus joelhos também. Olha! E se eu continuar sumindo?

- Ai a gente vê o que faz, mas não temos que falar disso agora, temos? Soube que hoje Tico-tico tá estranhinho? Nem correu na rodinha dele. Tô muito preocupado, pensando em levá-lo ao médico.

Carlos estava tão preocupado com Tico-tico, o hamster, que Nina achou melhor parar de falar do nariz, mas o terror tomava-lhe conta e passou a madrugada inteira imaginando que iria desaparecer completamente. E foi exatamente o que começou a acontecer já no dia seguinte: dedos dos pés, pés, calcanhares, tornozelos... A cada hora que se passava, mais partes evaporavam e ela não sentia forças para pedir ajuda, para chamar por socorro. Via suas partes indo embora, mas nada fazia, se entregava, em desespero ao des-existir. Pernas, coxas, nádegas, vagina, virilha, barriga, umbigo, costelas, costas, pescoço, braços, mãos, dedos das mãos, queixo, bochechas, boca, olhos, sombrancelhas, testa, cabeça, cabelo, orelhas. As orelhas foram as últimas a irem embora. Ainda resistiram duas horas depois que o restante do corpo já não estava lá. 

Quando Carlos chegou, Nina já não podia ser vista, mas ele não reparou. Entrou em casa, disse "oi" para a mulher atordoada e invisível e foi cuidar de seus afazeres. Nina, mesmo sem os olhos, chorou. 

E nunca mais foi vista.