quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Desesperança

Somos a sombra do que um dia fomos e somente esboço do que queríamos ser. Perdemos a memória do futuro.

Onde guardamos as lembranças do que viveríamos?
Onde estão as fotos do que estava para acontecer?
Onde está o que estava para acontecer?

Em um esquizofrênico teatro do cotidiano, encenamos nós mesmos. Intermináveis monólogos ou diálogos non senses. Por vezes sou bruxa, em outras palhaço. Nunca sou o papel (revelador) que reivindico: o de iluminador. Nessa vida-metáfora, não queria estar em cena, a ter que lembrar diariamente de minhas falas e marcações. Minha personagem me entedia.

Lá fora tudo bate, espreita, roda, buzina e convoca. Aqui, nada acontece. Coloco gelo nos hematomas de embates que não quero mais ter. Mesmo assim, os tenho. São os restos de uma pulsação vital.

Na desesperança, me aconchego, sossego. Na desesperança, sou livre e feliz.

Escrevo

Escrevo e me construo.
Esculpo minhas máscaras,
Gravo minhas farsas,
Traduzo meus desejos,
Desnudo meus segredos.
Narro-me.
Escrever é inscrever-me em mim.

domingo, 20 de novembro de 2011

Evolução

Por vinte anos tive uma amiga querida. Ela era inteligente, divertida e animada. Amiga para momentos bons e ruins. Tinha defeitos tão terríveis quanto suas qualidades, é verdade. Mas também os tenho e também são enormes. Diante de minha falta de moral no assunto, relevava sua futilidade e língua afiada. Sabe-se lá quantas coisas terríveis ela também relevou para ser minha amiga por tanto tempo. O certo é que nutríamos uma pela outra amizade e afeto sinceros.

Sempre, no entanto, existiu entre nós uma questão: ela era fascista. Todos os fios de seus cabelos loiros eram de extrema direita e sua metralhadora verbal voltava-se aos negros, pobres, gays, mulheres(!) e surdos. Sim, surdos. Digo era porque hoje não sei mais. Tenho esperanças que as pessoas mudem. Alexandre não. “Sou pessimista”, ele informou da última vez que nos encontramos, barrando mais um momento tudo-vai-dar-certo-tenho-certeza. Mas eu tenho fé na evolução da espécie. Outro dia meu pai perguntou: “o que estamos fazendo pela evolução da espécie?“. Murchei. Penso que estou fazendo muito pouco.

Da amiga em questão, eu me afastei. A briga foi séria e definitiva. O que no início era um incômodo, tornou-se uma diferença irreconciliável. Não tinha como relevar mais. Relevar era negar os meus mais profundos princípios. A amiga antes divertida, passou a me dar náuseas.

Para os que insistem em questionar - “você perdeu uma amiga por isso?” - eu tenho o prazer de reafirmar: “Isso” não é tudo, mas é muito. Diz do caráter, da visão de mundo e até da inteligência.

Acho que evolui.

Revanche

Das cinzas, da lama, da caverna, do fundo, do breu, você ressurge. Não está amputado, não está manco, não está coxo. Bem mais que inteiro, está maior. Bem mais que pronto, está de peito aberto. Sua vingança, seu deboche e sua arma é continuar a ser.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Espectadora

Entre eu e o mundo uma vidraça (quem a colocou aqui?). A vida está em uma vitrine, um aquário. O desenrolar da humanidade é, para mim, paisagem. E passa distante: não me toca, não me atinge. Faz sol, as crianças correm, as mulheres sorriem, os homens bebem. Sou alheia a toda essa pulsação vital (será que essas pessoas sabem que vivem?). Escolho o papel de público. Uma forçada, impaciente e desinteressada espectadora. Percebo que eu até pertenço a esse mundo. Sou dele componente. Estou em sua engrenagem. É o mundo pela vidraça que não pertence a mim. Tenho outras cores, outros sons e outros sabores. Contrários, estranhos. Vejo o mundo por uma vidraça e pergunto-me: de qual lado está a realidade?

Nunca machuca

Nunca bate. Sempre belisca.
Nunca empurra. Sempre cutuca.
Nunca grita. Sempre resmunga.
Nunca cospe. Sempre cala.
Nunca destrói. Sempre desconstrói.
Nunca vai embora. Mas também não fica.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Procura-se

Estou sentindo muito a minha falta. Desde que parti, procuro-me em todos os cantos. Já espalhei fotos minhas pela vizinhança e ofereço uma boa recompensa a quem me encontrar. Tão logo sumi, fui até a polícia à minha procura. Estava desesperada atrás de mim e, gaguejando, contei como foi:

- Saí hoje cedo dizendo que voltava logo e nunca mais apareci. Foi ficando tarde e eu esperando aflita um telefonema que seja! Nem sinal de mim.

Frio e calculista o delegado informou:

- É necessário esperar 24 horas para configurar um desaparecimento.

Eu protestei:

- Mas é muito tempo, doutor! E se nunca mais eu for encontrada?

Ele deu de ombros. Eu fui por conta própria me procurar na casa de amigos, nos lugares que costumava frequentar. Rodei a madrugada inteira e nem sombra de mim. No dia seguinte, novamente na delegacia:

- Agora estou oficialmente desaparecida!

- Tudo bem, tudo bem... A senhora deu algum sinal de que iria sumir? Estava com problemas?

- Não que eu tenha notado. Eu sou uma pessoa muito responsável e sempre tive um relacionamento muito aberto comigo. Acho que se tivesse com problemas eu teria me contado.

- Sei..., mas a maioria das pessoas desaparece porque quer, minha senhora.

- Não é o meu caso! Tenho certeza que aconteceu alguma coisa grave, doutor. Eu jamais desapareceria assim, me deixando tão aflita!

- O que podemos fazer é te colocar na lista dos desaparecidos e começar a busca. É muito importante que a senhora mantenha a calma. Não posso prometer nada, mas faremos de tudo para encontrá-la.

Já se passou tanto tempo desde essa conversa, que estou perdendo as esperanças. O meu maior medo é que, caso seja encontrada, eu não mais me reconheça.