sexta-feira, 25 de maio de 2012

Por que marcham as vadias?


Um dia na faculdade um menino veio conversar comigo. Me contou que eu estava com fama de fácil. Detalhe que talvez importe na narrativa: estudávamos, eu e o menino, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Não sei se sua intenção era boa ou ruim e isso pouco me importava, mas ele enfatizou: todo mundo diz. Também não me lembro qual foi sua reação diante da minha retumbante gargalhada. Talvez tenha ficado surpreso ou me achado louca. Pode, ainda, ter pensado, compadecido, que era uma atitude de desesperado embaraço diante de tão abaladora revelação. Às vezes, machista é tão ingênuo! 

Eu não estava abalada, muitíssimo pelo contrário. Ria regozijando e era inteira tomada de uma profunda satisfação. Era tão grande o orgulho que sentia que, imediatamente, adotei  uma postura ereta, queixo erguido, passadas firmes, quase arrogantes. O que, alguns anos antes, teria me provocado imenso horror, me encheu de uma sublime alegria.  Eu tinha chegado lá e era, enfim, uma vadia. 

Confesso, consternada, que no plano afetivo-sexual pouco fiz para merecer a condecoração. Nesse quesito, minha vida era uma espécie de O Artista: nem tão ruim que saímos no meio da seção, nem tão bom que merecesse ganhar o Oscar. Soldado raso no campo da vadiagem era tratada, no entanto, como general, comandante da putaria.

Existindo minhas peripécias sexuais apenas na fantasia daqueles que me nomeavam, por que minhas mãos na calçada da fama?  Elementar, meu caro Watson: eu não me encaixava. Ou melhor, eu não me encaixava mais. Finalmente, o mundo compreendia a mudança lenta e gradual, pé ante pé, que eu fazia na minha vida. Uma tentativa de ligar cada vez mais o fôda-se, de me desvencilhar das neuroses da minha criação, da escola onde estudei, de trajetórias e comportamentos pré-determinados. Ainda estava tão lá atrás... 
PAUSA PARA SUSPIRO NON SENSE: Ainda estou tão lá atrás... Tão contraditório, mas quanto mais ando em minha direção, mais distante fico de mim. É uma loucura de sempre almejar mais me ser e então converto-me em algo quase inalcançável para mim mesma... Ainda carrego tantos pesos... Ainda tenho tantas amarras... 
Mas, para um grupo da faculdade, eu já estava em outro lugar, já era essas mulheres, já era esse tipo. Mesmo que, secretamente, eu me sentisse uma farsa, assumir minha nova forma social foi uma experiência epifânica. E, tendo apenas um gostinho da liberdade, eu entendi que ser livre é quase tão libertário quanto morrer, e o melhor: não precisa morrer. 

Como vadia que sou, amanhã estarei na marcha. Marchamos contra a opressão de gênero, pela legalização do aborto, pelo direito pleno ao nosso corpo, contra os padrões de beleza e a violência, contra o machismo (o racismo e a homofobia), contra a ideologia da mulher-coisa, pela valorização do indivíduo, da humanidade, pela paz, pelo respeito, pelas mulheres da Eliana Silva. Marchamos, com postura ereta, queixo erguido, passadas firmes e juntas, porque a liberdade de sermos quem somos é um poder real e imbatível que temos sobre o mundo. 

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Não sou petista


Não sou petista, vale dizer. Sempre me confundem, mas saliento: não sou petista. Puxando pela memória, até me recordo de um dia ter sido, em alguma medida, petista. Apesar de nunca ter sido filiada, era uma espécie de militante lado B, a carregar com estardalhaço - ao menos de quatro em quatro anos - a estrela vermelha no peito. 

É a mais pura verdade que voto no Lula desde que me entendo por eleitora. E sim: assino embaixo do “nunca antes na história desse país...”. Também votei na Dilma que, além de ser sucessora do cara, ainda tem vagina (veta Dilma e faça passar um pouco da birra que estou de você!). Acho que os dois foram as melhores opções para o país, apesar de pilotarem um trator chamado desenvolvimento que, muitas vezes, derruba casas e vidas (que o diga as populações ribeirinhas). Além disso, minha arma cidadã está constantemente apontada contra aqueles que representam o que mais abomino na política brasileira. Porém, ressaltemos: não sou petista. 

O PT me perdeu definitivamente (e está cagando pra isso, é verdade) quando o Pimentel dissolveu o partido em Belo Horizonte. Tenho um amigo que diz: “não vou desistir. Não vou entregar o PT, vou ficar e lutar. Vou disputar o partido”. E eu pergunto: qual? Esse que confirmou o apoio ao Lacerda? Tá certo, existem uns gatos pingados tentando fazer alguma coisa que lembra aquilo que um dia foi o Partido dos Trabalhadores, mas a grande maioria parece atuar em benefício próprio ou em nome de um bicho de dezoito cabeças chamado conjuntura nacional. Vontade de gritar: “não vendam a minha cidade em nome dessa porra!”. Mesmo assim, insistem em dizer que eu sou petista.

Andei investigando o fenômeno. As pessoas que me acusam de petista não o fazem por causa do meu voto ou da minha outrora militância fajuta. A alcunha que recebo é por ser a favor do sistema de cotas, do casamento gay, da legalização do aborto e da maconha, da igualdade entre os gêneros, da justiça social, da distribuição de renda, do respeito aos direitos da população de rua, da reforma agrária. Sou a favor das comunidades que lutam por moradia, da taxação dos mais ricos, de invadir terras, de ocupar a cidade, de pisar na grama, de arrancar as grades, de rolar na praça, de bagunçar o coreto, de perder essa cara de limpinho, arrumadinho, engomadinho. Sou a favor da liberdade sexual, da preservação do meio-ambriente, da desmilitarização da polícia e de fuder a Veja. 

Vamos deixar uma coisa bem clara aqui, camarada: isso não chama petista, isso chama de esquerda. Fazendo um paralelo, você que não é a favor de quase nada do parágrafo anterior (nem do meio-ambiente?) não é tucano ou democratas. Talvez, você nem vote. Você é de direita. Ficou mais claro? E não me venha com esse papo de centro-blá-blá. Eu sei que depois da ditadura começou a pegar maior mal falar que é de direita nesse país, mas já está na hora de encarar os fatos e sair do armário: você é de direita. Essa é a condição em que você se encontra por livre e espontânea vontade. Você pode até não ser de extrema direita, um reacionário-nazi-babaca, mas desiste de me convencer desse centro-sei-lá-o-que. Já eu sou de esquerda: sem centro e sem meia. De cara limpa e sem a menor disposição para alianças escrotas. Eu sou de esquerda: bem menos do que almejo, bem mais do que você tolera. 

Agora, podemos começar a conversa?

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Somos Todos Emicida

Tenho lido várias coisas sobre a prisão do Emicida em Belo Horizonte. A mais esdrúxula delas – depois do B.O fabricado, claro – dizia que o rapper queria se promover à custa do episódio. Por isso, começo dizendo que quando foi informado que seria preso, Emicida comportou-se como qualquer um de nós se comportaria. Era evidente em seu rosto que ele estava surpreso, apreensivo e indignado. Se esse episódio trouxe para ele alguma visibilidade, essa foi conseqüência da ação da PM e, de forma alguma, do músico. O que Emicida desejava não era ser preso, mas ir para o hotel descansar depois do showzaço que fez na cidade.

Um pouco antes de anunciar a principal atração do evento, PDR leu um texto que dizia mais ou menos assim: “Sexta-feira passada a comunidade Eliana Silva, aqui no Barreiro, sofreu uma ação violenta de desocupação. Agora, cerca de 300 famílias estão ao relento. O Palco Hip Hop se solidariza com a luta e com a resistência dessas pessoas. Somos todos Eliana Silva!”. Na sequencia, subindo ao palco, Emicida repetiu: “Somos todos Eliana Silva!”. O público, até então apático diante do primeiro grito de solidariedade, respondeu com entusiasmo. Diante do ídolo de braços erguidos, todos sentiram-se Eliana Silva, alguns se compadeceram do sofrimento de quem perde sua moradia. Com o meu pouco conhecimento da cultura hip hop, só ali entendi a importância do Emicida não apenas como símbolo de uma identidade periférica, mas como porta-voz daqueles que ninguém mais escuta. A ode libertária coletiva continuou com os primeiros versos de “Dedo na Ferida”. Qual jovem negro e pobre nunca quis mandar, a plenos pulmões e com dedo do meio em riste, a polícia e os políticos se fuderem? A música – e que se danem os críticos de plantão a tudo o que é popular – é redenção comunitária.

Vários dos policiais que faziam a segurança do local, no entanto, tinham participado da desocupação da comunidade e sentiram-se pessoalmente feridos. A impressão de quem estava nos bastidores foi que o suposto desacato era mais pretexto que motivo. Começou uma extensa e tensa negociação. De um lado, a PM dava mostras de que estava irredutível, do outro, a organização do evento apresentava argumentos legais a favor da liberdade de expressão e atentava para o fato da repercussão que essa prisão traria.

PAUSA PARA MOMENTO MOBILIZAÇÃO: Um pouco antes do show acabar, desesperada com a situação, eu liguei para o Rafael Barros que me colocou em contato com o Joviano, das Brigadas Populares. A partir daí, várias pessoas começaram a me ligar. Do outro lado da linha, solidariedade e instruções de como agir. Foi aconchegante e mágico descobrir que existe uma eficiente rede do bem. Foi Joviano quem mandou o advogado que, brilhantemente, intermediou toda a situação. Diante de cerca de trinta policiais de colete e armados, eu me senti forte.

Foi da polícia que partiu a sugestão: Emicida não seria preso caso se retratasse no palco. Como disse antes, Emicida não queria ser preso. Queria ir para o hotel, descansar, tomar banho, quem sabe ligar para a sua mãe. Ele estava nitidamente assustado, mas nem titubeou em rejeitar a possibilidade de retratação. Poucas são as pessoas com quem a PM quer negociar e menos ainda aquelas que, de peito aberto e cabeça erguida, dizem “não”. Ali, eu também entendi que não se chega à posição de ídolo e de porta-voz traindo seu público e, principalmente, seus ideais. Fomos todos para a delegacia.

Desse ponto em diante, a história está nos jornais, muitas vezes distorcida. Vale dizer que as pessoas da Eliana Silva – que foram para a porta da delegacia prestar solidariedade ao rapper – continuam ao relento.

Alguns amigos e até desconhecidos me dizem que espero algo que nunca vai acontecer, meio naquela de: “o mundo é assim mesmo”. Essas pessoas, na verdade, me conhecem pouco. O que desejo está muitíssimo além do que elas imaginam. O mundo no qual eu quero viver prescinde de leis para que exista justiça. Esperar que a polícia aja em conformidade com as leis, de forma ética, nunca movida por interesses pessoais, protegendo os mais fracos e evitando o uso de violência não é utopia. É o mínimo.