“Vagabundo”, pensou a Mulher que viu Fernando sendo abordado pela polícia. “Vagabundos”, foi o mesmo que pensou o Senhor que passou por ali a tempo de assistir Fernando, Joviano e Rafael serem algemados. “Vagabundos”, completou baixinho um rapaz que viu os três no camburão da PM. A Mulher, o Senhor e o Rapaz não conhecem Fernando, Joviano ou Rafael. Eles nem imaginam que eles foram presos, intimidados e agredidos quando defendiam valores que lhes são tão caros: a justiça, a liberdade, a não-violência.
Agora, pasmem, se soubessem, em nada mudaria o julgamento apressado que fizeram. Isso porque, a Mulher, o Senhor e o Rapaz confiam na polícia. E eles têm razões de sobra pra isso. A Polícia Militar brasileira foi criada com o objetivo único de proteger essa Mulher, esse Senhor e esse Rapaz. O sanguinário exército fardado existe para servir às elite (que, por motivos ideológicos, nunca mais conjugarei) e à classe merda. Missão prioritária comando Delta: deixar tudo o que pode abalar o status quo controlado! Controle à base de cassetete, violações dos direitos humanos e arbitrariedades. Braço armado a serviço da ideologia que prega: tudo deve ser como está. Cada um no seu quadrado, principalmente, preto e pobre.
PAUSA PARA A AÇÃO MAIS EFICAZ DA PM: O instrumento de controle social mais eficaz exercido por essa instituição, altamente tecnológico, é a violação cotidiana da dignidade de quem é preto e pobre. Então, camarada, se você é preto e pobre, se você é só preto ou só pobre, ou se você, por algum acaso, acha que preto e pobre não deve ser espancado por ser preto e pobre: cuidado! A PM vai te pegar. Ela está no seu encalço, esperando na esquina da sua casa, no ônibus que você pega, no bar, na praça, na blitz (“esse carro é seu mesmo, vagabundo?”).
Nessa sociedade policialesca – que é mais que um Estado policialesco – não cabem questionamentos, chamados “desacatos”, e muito menos pedidos de justiça: “grave perturbação da ordem”. Foram o que fizeram Fernando, Joviano e Rafael: questionaram e pediram justiça. “Vagabundos” repetem, após esse esclarecimento, como já tínhamos previsto, a Mulher, o Senhor e o Rapaz. Em coro, gritam: “bem que mereceram. Se tomaram, é porque mereceram”.
Fico com náuseas, vontade de correr, sumir, dizer: alô mundo, já deu pra mim. Fui! Sinto cada vez mais que não sirvo para viver nesse lugar no qual a Mulher, o Senhor e o Rapaz são a maioria massacrante. E teve um dia em que esse sentimento estava me tomando e que a Milene disse mais ou menos assim: "mas somos poucos. Um que desiste já é muito" (Milene sempre me arrebata com sua coragem, sua vontade de defender os mais fracos, de lutar pelo que é justo. E sempre fico com vergonha porque tenho bem menos fibra, disposição, compaixão e saco. Sou egoísta no último grau quando estou com Milene). Hoje, como Milene não veio impedir que eu depusesse minhas acanhadas, supérfluas e medrosas armas, tive que resistir por conta própria.
“Não pise na grama” me causou um profundo horror. Mas eu ainda acredito. Mesmo com a Mulher, o Senhor e o Rapaz debochando de mim e de todas as pessoas de bem que eu conheço, mesmo assim, eu ainda acredito. Mesmo quando eu quero desistir e mandar tudo pra puta que pariu, eu ainda acredito. E hoje, um trecho da nota do Joviano fez às vezes de Milene. Ele dizia assim:
“Não descansaremos até que os agentes públicos diretamente envolvidos, o Município de Belo Horizonte e o Estado de Minas Gerais sejam responsabilizados civil e penalmente. Mais do que isso, não descansaremos enquanto houver cercas nesta cidade, pois preferimos lutar a perder nossa dignidade”.
Rá! Mulher, Senhor e Rapaz, atenção: somos poucos, mas fazemos um barulho danado!